Em pouco mais de uma hora, a palavra tecnologia apareceu 43 vezes durante o papo com Daniel Knopfholz, CIO do Grupo Boticário.
“A tecnologia — e o investimento que a gente faz nela — hoje é tão relevante [para o grupo] quanto o desenvolvimento de um produto de maquiagem, de perfumaria, ou de uma experiência em loja”, diz Daniel.
Esse investimento gira em torno de 300 milhões de reais por ano. E ajuda a impulsionar um conglomerado de beleza, que nasceu como uma farmácia de manipulação no centro de Curitiba (fundada em 1977, por Miguel Krigsner) e hoje engloba mais de 4 mil lojas com as marcas O Boticário, Eudora, Quem disse Berenice? e BeautyBox. Segundo Daniel:
“O grupo sempre teve um DNA de inovação forte em produto, em canal, na criação de novos negócios. O Artur [Grynbaum] fez movimentos incríveis dez anos atrás, criando essas startups todas… Mas esse DNA não estava aplicado de forma global para a tecnologia. Hoje, a gente se vê como uma empresa criando tecnologia para a experiência do consumidor — ou do cliente, se for um revendedor ou franqueado”
O lance mais recente desse movimento é um novo programa de aceleração de startups, que pretende turbinar ainda mais a busca por soluções digitais.
O DESAFIO DE SER UM NOVO ENTRANTE EM UM MERCADO JÁ CONSOLIDADO
Formado em Jornalismo, Daniel teve uma primeira passagem pelo grupo entre 2000 e 2003. Depois de alguns anos na consultoria Oliver Wyman, retornou em 2008 para ser diretor de O Boticário em Portugal — acumulando, em 2011, o cargo de diretor internacional.
Mesmo com uma operação já madura, ele precisou aprender a navegar num cenário em que a marca não tinha a mesma força que no Brasil. De volta ao país, em 2014, pôs esse aprendizado à prova ao assumir a Eudora, uma das startups do grupo.
“Quando você está num mercado supercompetitivo, com grandes players — sendo que um deles éramos nós, com outra marca [O Boticário] — jogando um jogo de gigantes, com seus produtos de qualidade e canais estabelecidos… Você precisa promover uma experiência diferente para os seus clientes e revendedoras”
“Revendedora” é uma palavra-chave. O setor de cosméticos depende muito da venda direta, a cargo de um batalhão de revendedoras (ou “representantes”, no jargão do grupo).
“A representante já estava satisfeita com as opções que tinha: vender O Boticário, vender nossos concorrentes grandes… Não havia motivação para incluir mais uma marca [Eudora] no portfólio, um produto que na época não tinha uma alta demanda…”
COMO CATIVAR AS REVENDEDORAS COM UMA PLATAFORMA DIGITAL
Não quer dizer que a vida da revendedora estivesse “fácil”. Como a venda direta era toda manual (e a prática de fiado, corriqueira), havia dificuldade de controlar o fluxo de caixa. E a relação com as marcas era engessada, analógica:
“Na época, a nossa equipe comercial precisava se encontrar com ela, na casa dela ou em um lugar público, para tirar fotos de documento e comprovante de residência, fazer essa pessoa assinar um contrato de revenda…”, diz Daniel.
A ideia do então diretor de Eudora era que essa cliente primária, a revendedora, pudesse se cadastrar numa plataforma e começar a vender imediatamente.
“Nosso olhar era: se a gente deixasse a vida dessa revendedora cada vez mais simples, digital, desde o cadastro até a experiência de compra, que tivesse serviços a distância… Seria muito melhor para ela. E a revendedora teria benefícios em vender Eudora que ela não tinha com outras empresas”
Outra dor de cabeça eram os catálogos dos produtos, sempre motivo de disputa ferrenha entre as revendedoras, que se queixavam da quantidade insuficiente.
“Catálogo, além de caro, é ineficiente, tem um impacto de impressão, de logística. A Eudora era uma nova entrante em um mercado maduro. A digitalização era a única alternativa de criar uma experiência e dar uma vantagem competitiva para aquela cliente [primária].”
A DIGITALIZAÇÃO AJUDOU EUDORA A DESLANCHAR
A partir desse insight, a marca desenvolveu e lançou uma ferramenta digital. Atualmente, tanto Eudora quanto O Boticário têm apps das revendedoras.
Segundo Daniel, a solução pode parecer “básica” — mas não é.
“Hoje, toda a experiência da revendedora com a gente acontece através do aplicativo. Não é só transacional: fazemos lançamentos de produtos, explicação permanente de produtos, tudo dentro do app. Ela tem informação sobre o ciclo anterior, sobre o próximo ciclo, consegue fazer lista de pedidos dos seus clientes…”
O catálogo digital, originalmente um feature do app, virou um aplicativo próprio, quando o time entendeu que aquele produto teria valor como uma ferramenta separada.
Aliada a outros fatores (reposicionamento de marca, investimento em produto), a digitalização ajudou Eudora a deslanchar. Hoje, diz Daniel, a marca fatura mais de 1 bilhão de reais.
O GRUPO VEM INVESTINDO PESADO NA CONTRATAÇÃO DE DESENVOLVEDORES
Em 2019, o executivo foi promovido a CIO do grupo para escalar essa mentalidade, em que a tecnologia deixa de ser vista como suporte e ganha função de resultado, de P&L.
Para sustentar esse movimento, o grupo internalizou os times de programação, incumbidos de desenvolver e melhorar constantemente os produtos digitais.
“Fizemos um esforço nos últimos dois anos na contratação de desenvolvedores, principalmente de Front, mas também de Back-end, para termos isso produtizado, de verdade. Temos equipes próprias que estão evoluindo e modificando esses produtos [digitais] quinzenalmente, às vezes semanalmente”
Hoje, a área de tecnologia do Grupo Boticário tem cerca de 600 pessoas; entre 30% e 40% são colaboradores diretamente inseridos na frente de digitalização. “Vamos chegar a mil pessoas [na área de tecnologia] até o fim do ano”, diz Daniel.
DURANTE A PANDEMIA, UMA STARTUP AJUDOU A UNIFICAR O WHATSAPP
Em termos de estrutura, a tecnologia é hoje uma vice-presidência, liderada por Daniel e com três esteiras de desenvolvimento. No front office, o foco são soluções digitais voltadas ao consumidor final, como um aplicativo para o consumidor final (por enquanto disponível apenas para a marca-mãe).
“O consumidor consegue ter acesso às suas promoções específicas, programas de fidelidade…”, diz o CIO. “Tem um nível de segmentação ali que poucas marcas do Brasil e do mundo oferecem.”
Da esteira do back office saem ferramentas para azeitar os bastidores do negócio, como uma plataforma de gestão e integração de canais.
“Hoje temos 400 lojas em que você pode retirar um pedido feito pelo site. Ou ir numa delas, fazer o pedido e receber em casa, caso a loja não disponha daquele [produto em] estoque… Parece simples, mas para ter acuracidade de estoque, existe uma solução digital bastante complexa por trás disso”
Dentro da questão da omnicanalidade, Daniel cita ainda uma solução recente, criada em conjunto com a startup curitibana Omnichat para uniformizar o WhatsApp, que bombou no varejo em geral durante a pandemia.
“Desenvolvemos uma solução para que, hoje, nosso WhatsApp tenha um número único no Brasil. Isso nos permite colocar no site, na televisão, na publicidade, um telefone nacional, com DDD único, assim consigo fazer um [uso do] WhatsApp massivo.”
NO BOTILABS, A MISSÃO É OLHAR TECNOLOGIAS COM FOCO NO LONGO PRAZO
A terceira esteira de inovação, também sob o guarda-chuva da vice-presidência de tecnologia, é o BotiLabs, um laboratório para desenvolvimento de protótipos, sem compromisso de endereçar desafios de curto prazo.
“A gente acredita que a inovação vem da resolução de problema, e não do ‘Professor Pardal’ que um dia acordou com alguma ideia incrível. A diferença é que o BotiLabs é um pouco mais experimental, mais solto… Ali a gente busca tecnologias que ainda não são maduras, ou soluções para problemas que ainda não são latentes”
Daniel dá um exemplo desse olhar de longo prazo: um tempo atrás, o Botilabs desenvolveu uma tecnologia de reconhecimento facial para lojas, com o objetivo de identificar o cliente e apresentar ofertas personalizadas (a partir, por exemplo, da informação de algum produto que aquele consumidor pesquisou, mas abandonou no carrinho virtual).
“Dado que o reconhecimento facial gerou muitas discussões ainda não resolvidas, e que o algoritmo ainda tem dificuldade em reconhecer pele negra, decidimos não utilizar até que essa tecnologia esteja mais evoluída.”
COM STARTUPS, O GB VENTURES QUER ESCALAR SOLUÇÕES DE EXPERIÊNCIA DE COMPRA
Com uma equipe de 15 colaboradores, o Botilabs estará incumbido de pilotar o GB Ventures, o novo programa de aceleração de startups do Grupo Boticário.
Uma startup, diz Daniel, precisa de um problema (a ser resolvido), dinheiro, mentoria e, o mais difícil, um espaço para testes. Esse ambiente para validar hipóteses é um dos atrativos do programa:
“Entendemos que tínhamos uma grande diversidade de marcas e de canais — e-commerce, venda direta, lojas grandes, pequenas, franqueados, com revendedora, sem revendedora — no Brasil inteiro. Um espaço laboratório, quase um parque de diversões, para startups testarem soluções industriais, logísticas, de varejo…”
Em fase final de seleção, as startups serão aceleradas a partir de fevereiro. Junto com essas empresas, o grupo espera atacar desafios logísticos, ligados a inteligência de dados e também à experiência de compra e à personalização de produtos.
“Até já fazemos isso em nossa loja experimental, Boticário Lab, [inaugurada em novembro] em São Paulo: você marca uma sessão, daí um aplicativo e um perfumista te ajudam a criar um produto seu, sem igual. Mas como isso vai ser feito em escala? E vai ser na loja, na sua casa, ou nos dois?”
META: ACELERAR A PRESENÇA DE MULHERES E DE PESSOAS NEGRAS NA TECNOLOGIA
Aos poucos, o link entre diversidade e inovação no ambiente corporativo parece transcender a esfera do discurso. Daniel diz que o grupo está empenhado em tornar a liderança da área de tecnologia mais diversa.
“Dois anos atrás, só 25% da nossa liderança era formada por mulheres, hoje já são 50%, porque demos um olhar para isso. Na liderança de negros, também crescemos, mas ainda precisamos chegar nos mesmos 50%”
Recentemente, o Boticário anunciou o programa Desenvolve, bancando cursos gratuitos de Full Stack e Front-end nas escolas Crescere, Kenzie Academy, Labenu e ONE. Segundo Daniel, a empresa aprovou 134 candidatos (de 8 mil inscritos), alguns dos quais podem vir a reforçar, futuramente, o time de tecnologia do grupo.
“A tecnologia hoje paga salários melhores do que o mercado. Um desenvolvedor autodidata pode se formar em um ano ou até menos, não precisa de faculdade. Por que então não promover a presença de mulheres e especialmente de negros na área de tecnologia, e assim recuperar um gap histórico de um jeito muito mais acelerado?”
Fonte: Projeto Draft