Centros de comércio popular começam a pensar em reinvenções para seus negócios em um cenário pós-Covid. Acostumados a grandes aglomerações, lojistas paulistas de pontos na região da 25 de Março, Brás e até entrepostos do Ceasa já sentem a migração do consumo para o online e acreditam que o movimento digital deve crescer ainda mais quando houver a retomada.
As ruas que formam o comércio popular no entorno da rua 25 de Março, no centro da capital paulista, hoje estão vazias, mas chegam a receber milhares de pessoas nas altas temporadas de vendas. A União dos Lojistas da Rua 25 de Março e Adjacências (Univinco) tem divulgado algumas lojas com páginas virtuais ou vendas por redes sociais, mas o resultado é pífio, de acordo com o diretor da entidade, Pierre Sarruf, que também é dono do Rei do Armarinho. “É uma grande vantagem para os que têm [e-commerce] nesse momento. Eles conseguem não zerar o fluxo de venda. Mas é uma quantidade pequena, diante de tudo que é vendido no físico”, afirma.
Sarruf conta que os varejistas têm adequado os negócios para o online nos últimos anos, mas que as lojas virtuais ou páginas em marketplaces funcionavam mais como um suporte para as lojas físicas – e que isso deve mudar com a retomada. “Isso era tratado como um catálogo virtual, mas no pós-pandemia o digital vai evoluir muito”, diz.
De acordo com ele, alguns lojistas que não têm e-commerce estão conseguindo vender um pouco por WhatsApp. “O pessoal da loja tira foto, manda para o cliente, faz a venda e envia pelos Correios. Para alguns tem funcionado.”
Armarinho vende elástico para máscaras
Hoje sob comando de Sarruf, o Rei do Armarinho tem 94 anos de atuação e conseguiu migrar o atendimento para o digital, de acordo com o empreendedor, porque o consumidor o vê como fornecedor de matéria-prima. “Subimos em quantidade de vendas diárias, mas não paga os custos da loja física. O tíquete médio caiu bastante. Hoje o que eu mais estou vendendo é elástico para fazer máscara. É um sinalizador para fortalecermos cada vez mais o canal.”
Vizinho de Sarruf na região, Eduardo Ansarah, dono do Depósito de Meias Ansarah, conta que os lojistas já vinham enfrentando quedas de fluxo e de faturamento entre 3% e 5% desde 2015, mas que a recuperação de 1% em janeiro deste ano trouxe esperança por dias melhores. “Para quem vem de estagnação e tem um resultado de 1%, é um baita crescimento. Começamos a sentir o mercado mais positivo, mais otimista, mas isso acabou no Carnaval”, afirma.
E-commerce não paga nem o IPTU
O comércio na região começou a cair mesmo antes da quarentena, de acordo com Ansarah. Com o anúncio da pandemia, os consumidores já reduziram a ida para as ruas. “Caiu 90% só nesse período. Quando o prefeito [Bruno Covas] decretou a quarentena, o faturamento desapareceu de vez.”
Ansarah diz que o comércio eletrônico ficou estagnado na primeira semana, mas começou a esboçar reação depois disso. No prolongamento da quarentena do estado, que ocorreu após o dia 8 de abril, as coisas começaram a melhorar, mas ainda estão longe do ideal. “O e-commerce, em vista de todo faturamento perdido, não representa nada, não paga nem o IPTU.”
Ansarah e Sarruf afirmam que as lojas precisarão adotar novas medidas para conseguir faturar na retomada do comércio. Os consumidores estarão mais comedidos nas compras e também estarão mais propensos a evitar aglomerações, na avaliação dos dois. “Eu acho que vai ficar no subconsciente que isso pode acontecer de novo, um trauma de guerra. Todo mundo vai ter que criar outro canal de venda, como maneira para sobreviver”, diz Ansarah.
Retomada pode ter tom de “trauma de guerra”
O retorno às atividades do comércio deve ser lento e gradual, de acordo com o assessor econômico da FecomercioSP, Altamiro Carvalho. Além das questões de segurança, por conta do vírus, ele também diz que tanto os empresários quanto os consumidores voltarão extremamente fragilizados financeiramente.
O “trauma de guerra”, mencionado por Ansarah, será somado à preocupação com a queda ou até desaparecimento da renda. “As pessoas terão medo da contaminação e também do quadro econômico que se vislumbra no pós-crise, com queda no PIB, aumento do desemprego e taxas de juros crescentes. Elas ficarão inseguras em retomar o padrão de consumo”, afirma o especialista.
O digital será uma solução para boa parte do comércio, mas Carvalho lembra que é fundamental levar em consideração o contexto das empresas brasileiras: a maioria é de micro e pequeno porte e não tem capacidade financeira de abrir e manter um e-commerce, gastando com tecnologia, suporte, segurança e logística. “Não é um processo que se faz da noite para o dia. Requer um tempo de implantação e dedicação intensa. E o site não atende 100% do varejo. O delivery, por exemplo é mais acessível”, sugere.
Brás sente aumento de sacoleiras no período
O marketplace Gironobrás tem 72 fábricas do segmento têxtil brasileiras cadastradas, sendo 50 com sede na região do Brás. A CEO Viviane Marrese conta que sentiu um aumento de 30% nas vendas desde o início da pandemia e uma corrida dos fabricantes para tentar levar a loja física para o virtual. Por outro lado, as chamadas sacoleiras e os consumidores individuais têm se proliferado na plataforma.
“Tivemos que ensinar (os fabricantes) a fazer fotos, escrever descrição do produto. Acho que a única coisa que eu vi de positiva até hoje (na quarentena) é que o pessoal do Brás acordou que precisa entrar de vez no online ou vai ser difícil”, explica.
Viviane conta que também percebeu o aumento de clientes finais, em busca de promoções, e também de novas sacoleiras comprando pela internet. As profissionais costumam abastecer o estoque nas lojas do Brás e vender as roupas nas regiões em que moram ou em páginas da internet. “Percebemos que elas pedem um produto, fazem o cadastro de uma peça, testam, e depois voltam para fazer compras em quantidade.”
O Gironobrás surgiu há cerca de três anos devido à percepção de que as viagens de empreendedores de outras cidades tinham diminuído, por conta da crise econômica. A logística é feita totalmente em parceria com os Correios. “Quando o fornecedor não tem condição de ter a logística interna, temos um depósito e o próprio pessoal da agência faz embalagem e entrega.”
A empreendedora diz que muitas peças não estão no ar, porque os fabricantes não conseguiram fazer fotos antes da pandemia. Ela aposta em um crescimento na retomada, pois as marcas perceberam a importância de também ter presença online. “Tem muito consumidor que vem no chat e pergunta para nós se é confiável comprar pela internet, como funciona o pagamento. Tem muita gente fazendo pela primeira vez.”
E-commerce com dois meses de vida precisou acelerar processos
Em janeiro deste ano, a empresa CV Market Place colocou no ar o site Feira do Ceasa, que tinha o objetivo de ser mais um canal de venda para os entrepostos da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp). No entanto, com apenas dois meses de vida e ainda trabalhando nas primeiras reposições, a plataforma precisou acelerar alguns planos com o aumento repentino de demanda.
A princípio, o site havia sido desenhado para atender o setor de food service e varejistas de alimentação, que não queriam ou não poderiam se deslocar até a região do Ceasa. Mas a quarentena trouxe outro movimento para o site. “Começamos a observar que pessoas comuns estavam comprando, mesmo sendo em grandes quantidades, como em caixas fechadas. Isso foi mais um gatilho nos forçando a iniciar a venda para o varejo. Colocamos a operação em pé em três dias. Unimos esforços e pessoas de todos os departamentos para fazer a coisa acontecer. Em dois dias, nossas vendas cresceram 300%”, afirma Cristian Rosa, fundador da empresa.
Faz pouco mais de 15 dias que a operação foi ampliada para venda no varejo, e o empreendedor já notou que 60% do público total é de consumidores finais. “Num primeiro momento tínhamos pedidos com tíquete médio de R$ 1.200. Era um volume grande e direcionado para um endereço. Agora temos vários pedidos, com tíquete médio em torno de R$ 150, para vários endereços. E estamos falando de produtos super perecíveis, que exigem refrigeração e cuidado no transporte e manuseio”, diz Rosa.
Ele afirma que o comportamento pode se manter no pós-crise porque o cliente gosta da comodidade de receber os produtos perecíveis em casa.
Medidas do governo são cheque em branco
Carvalho, da FecomercioSP, afirma que o maior agravante da crise é a falta de perspectiva e que isso poderia ser uma iniciativa do poder público. “É preciso ter um plano de retomada, que estabeleça quando o negócio poderá ser reaberto, com quais normas, quais segmentos, qual capacidade das lojas, dos shoppings. Diretrizes básicas para que o comerciante tenha possibilidade de planejar a retomada.”
Ele ainda diz que os planos oferecidos até agora podem ser perigosos sem esse planejamento, pois fazem com que o empreendedor se comprometa a não demitir por um determinado período, por exemplo, sem a comprovação de que poderá voltar a operar nesse meio-tempo.
“É viável assumir esse passivo? Será que eu vou conseguir sobreviver ao período em que o negócio vai ficar fechado? Ter o horizonte com um plano de retomada é fundamental, é isso que se espera do poder público. A incerteza agrava os danos financeiros e a recuperação será ainda mais dificultosa”, afirma.
De acordo com o Balanço de Vendas da Associação Comercial de São Paulo, na primeira quinzena de abril, o comércio paulistano sofreu uma queda de 65,5% em comparação ao mesmo período de março. Nem a Páscoa salvou.
Para contextualizar, a pandemia foi anunciada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março e as medidas de quarentena foram aplicadas a partir do dia 16. O governo de São Paulo deve anunciar amanhã, 22, como será a reabertura do comércio, em maio.
Fonte: PEGN