A combinação de aumento do desemprego, queda dos rendimentos e juros altos está provocando uma redução importante das dívidas no orçamento das famílias, processo que pode abrir espaço para um início de retomada do consumo em 2017.
Ainda sob efeitos de uma prolongada recessão, o cenário para as vendas está longe de ser considerado animador, mas o menor dispêndio com dívidas já representa algum alívio para os consumidores. Economistas ponderam, no entanto, que a reação da demanda dependerá mais do mercado de trabalho e da possibilidade de corte da taxa básica de juros.
O comprometimento mensal dos salários com dívidas ainda é alto e, mais recentemente, mostrou leve expansão, mas o endividamento em relação à renda acumulada nos 12 meses até junho (último dado divulgado pelo Banco Central) caiu 2,2 pontos na comparação com mesmo período em 2015 e ficou em 43,7%, o menor índice da série desde dezembro de 2012. Esse percentual ficou acima de 46% durante boa parte do ano passado, de janeiro até setembro.
Excluindo o financiamento imobiliário, a redução do endividamento é mais expressiva. Nessa métrica, o indicador – que chegou a superar 31% entre o fim de 2011 e o começo de 2012 – caiu de 27,2%, em junho de 2015, para 24,9% no mesmo mês deste ano. De acordo com pesquisa da Fecomercio-RJ feita em parceria com a Ipsos em todo o país, 68% dos consumidores afirmaram não estar pagando nenhum tipo de parcelamento em julho deste ano, maior número para o mês desde o início do levantamento, em 2010.
Para Flávio Calife, economista da Boa Vista, a principal razão para o recuo do endividamento está na piora do mercado de trabalho. “O consumidor não está apenas cauteloso. Ele está sem dinheiro”, diz Calife, mencionando que 42% dos consumidores ouvidos pela administradora do Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC) citam o desemprego como causa da inadimplência das famílias, segundo levantamento trimestral realizado em junho.
O elevado nível de endividamento das famílias, combinado à diminuição da renda, foi uma das causas da crise, avalia Fabio Silveira, sócio-diretor da Macrosector. Por isso, afirma, a trajetória de redução desse indicador é um movimento que pode ter impacto positivo sobre a atividade, ainda que condicionado a uma série de fatores.
Em seu cenário, as famílias devem voltar a se sentir confiantes para contrair dívidas a partir do segundo semestre do próximo ano, mas, para isso, é preciso que as medidas de ajuste fiscal sejam aprovadas, abrindo espaço para o corte dos juros e, também, que haja alguma recomposição da renda.
“A retomada do consumo será bastante lenta”, pondera Silveira, que prevê alta de 1% das vendas no varejo restrito (excluem automóveis e material de construção) em 2017, depois de retração de quase 6% este ano. Além da defasagem maior do mercado de trabalho para se recuperar, o economista menciona a redução modesta prevista para a taxa Selic, que deve chegar a 13% em dezembro do ano que vem, queda de apenas 1,25 ponto em relação ao patamar de hoje.
O custo do crédito subiu significativamente, apesar da estabilidade da Selic nos últimos meses, destaca Luiz Rabi, economista da Serasa Experian, o que tem feito os consumidores reduzirem seu nível de endividamento para não caírem na inadimplência. De junho para julho, a taxa de juros com recursos livres para famílias avançou 0,5 ponto, para 71,9%, nova máxima.
Por outro lado, diz Rabi, o comprometimento mensal da renda com dívidas mostrou ligeira expansão nos últimos meses, justamente porque o aumento dos juros faz com que uma parcela maior dos ganhos mensais seja destinada ao pagamento de financiamentos.
Sem considerar o crédito imobiliário, medida que Rabi avalia como mais correta, o comprometimento mensal médio da renda das famílias com dívidas subiu de 19,97% para 20,13% entre maio e junho, segunda alta seguida na série também calculada pelo BC. Em relação a igual mês do ano passado, o indicador avançou 0,5 ponto. Com o peso maior dos débitos a prazo no orçamento, pondera ele, é difícil que a demanda ganhe fôlego. “Precisamos ver três coisas para que o consumidor tenha folga no orçamento: queda significativa dos juros, da inflação, e que o desemprego pare de subir”, disse o economista da Serasa.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) estima que o comprometimento médio da renda mensal entre consumidores endividados está em tendência de declínio e recuou 1,3 ponto entre agosto de 2015 e o mês passado, para 30,2%. Na mesma comparação, a proporção de famílias que se declara endividada caiu de 62,7% para 58%.
A economista Marianne Hanson, responsável pela Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), explica que o Banco Central calcula o percentual de comprometimento considerando o total das parcelas de dívidas e uma estimativa da massa de rendimentos.
Já a CNC pergunta apenas aos entrevistados que se dizem endividados qual a fatia da renda destinada ao pagamento desses gastos, dando como opção três faixas diferentes, que vão desde menos de 10% da renda até mais de 50%. A média ponderada de todas as respostas, aponta Marianne, é o comprometimento médio mensal da renda.
Considerando os dados da Peic, a economista avalia que o comprometimento da renda com dívidas segue em patamar pressionado, mas com clara tendência de recuo, apesar do maior custo do crédito. Já a queda do nível de endividamento, em sua avaliação, é explicada também porque os consumidores têm contratado dívidas de menor valor, embora mais caras.
É o caso, por exemplo, do cheque especial, que foi usado por 7,1%, das famílias que afirmaram ter dívidas em agosto, ante 6,4% em igual mês de 2015. O uso do crédito pessoal também subiu no período, de 8,7% para 10,2%.
No levantamento da Fecomercio-Rio, o carnê de loja segue como a principal modalidade de crédito utilizada por quem paga parcelamentos, citada por 47% dos consumidores em julho, queda de dois pontos sobre igual período do ano passado. Em seguida, aparece o cartão de crédito, mencionado em 40% das respostas.
Para 2017, afirma Calife, da Boa Vista, está se desenhando um cenário um pouco melhor para o consumo, com redução da inadimplência e alta do crédito, mas a expectativa é que as dívidas de longo prazo permaneçam em segundo plano para os consumidores. “A diminuição do endividamento é um trunfo para a economia, mas há ainda uma cautela do consumidor.”