Encurralada pelo atual cenário de dívidas, juros altos e inflação na casa dos 10% ao mês, a fatia mais pobre da população brasileira vê seu poder aquisitivo encolher em ritmo acelerado em meio à recessão econômica. Segue, por outro lado, tolhida no acesso a oportunidades e serviços de qualidade, como saúde, educação, moradia e saneamento básico. “Não somos uma sociedade de classe média. Ainda sofremos dos mesmos males”, diz a professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Lena Lavinas. Portanto, afirma, oferecer mais crédito é uma alternativa “completamente equivocada” para reativar a economia.
A ampla inclusão financeira da classe trabalhadora observada desde 2003, com ganho real do salário mínimo e oferta de novas modalidades de crédito, como o consignado, não foi suficiente para elevar os pobres a uma classe média estável e expressiva. “Se tudo se resumisse a ter dinheiro, viva o neoliberalismo, não precisaria de Estado”, diz Lena, economista heterodoxa cujo currículo inclui graduação, mestrado e doutorado pela Universidade de Paris, oito anos como pesquisadora do Ipea e três como analista da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra. “Houve incorporação de 40 milhões, 50 milhões de pessoas ao mercado, o que é significativo. Mas o retrocesso é patente e quase imediato à desaceleração da economia”. Leia trechos da entrevista.
Valor: Há risco de que o país perca seu recente avanço social?
Lena Lavinas: Temos retrocessos claros que estão sendo colocados na ordem do dia. Há uma série de medidas de cortes de benefícios sociais, como o seguro-desemprego, que claramente já não atende à totalidade da demanda, o que tende a comprometer ainda mais a retomada do crescimento pelo mercado interno. Em segundo lugar, o crédito ficou muito mais caro. O Banco Central divulgou recentemente um dado surpreendente: dentre os tomadores de crédito em 2014, aqueles com renda de até três salários mínimos comprometem 73% da sua renda com despesas financeiras. O endividamento das famílias já bateu em patamares proibitivos. O terceiro aspecto é o salário mínimo. Sabemos que, se a renda média cresceu 35% entre 2003 e 2014, o mínimo cresceu perto de 90%. Ora, se temos crescimento negativo do PIB, não haverá aumento real. É muito preocupante porque os salários não vão crescer e a inflação está corroendo o poder aquisitivo. Com menos consumo, a Cofins e a CSLL também contribuirão menos para o orçamento da Seguridade Social, já combalido pelas desonerações. Se é verdade que 550 mil pessoas já se desligaram de seus planos de saúde e irão ao setor público, o risco é de colapso.
Valor: A chamada “nova classe média” pode regredir?
Lena : Não somos uma sociedade classe média. O que se chamou classe média, na verdade, são setores muito vulnerabilizados que se beneficiaram de aumentos reais do salário. Mas não esqueçamos que os salários seguem sendo muito baixos. Mais de 80% dos empregos criados entre 2003 e 2014 foram de até 2 salários mínimos. O rendimento médio é de US$ 425. Na Argentina o mínimo é US$ 800. Classe média aperta o cinto na crise, mas não cai de classe de renda ladeira abaixo, porque tem alguns ativos, poupança. Enquanto na OCDE 50% dos adultos têm poupança, no Brasil, segundo o BC, esse percentual é 12% em 2014.
Valor: Tende a piorar?
Lena : O Brasil, graças a um modelo social hoje em crise, fomentou o consumo de massa, garantindo transferências monetárias àqueles que viviam abaixo da linha da pobreza. O governo vinculou a tudo isso à novidade que foi a marca do PT desde 2003: criar o crédito consignado e outras modalidades de crédito, que permitiram acelerada inclusão financeira dos mais pobres. Por isso essa classe está altamente endividada e ainda paga por serviços que deveriam ser gratuitos, como saúde e educação.
Valor: O modelo foi errado? Ou faltou dinamismo?
Lena :: O que se tentou fazer no Brasil, na gestão do PT, foi resolver o gargalo da transição para uma sociedade de consumo de massa, sem reformas que pudessem enfrentar nossas profundas heterogeneidades estruturais. Isso tinha de acontecer no breve espaço de tempo de alguns mandatos. Mas investimento em moradia, saneamento, produtividade e formação de mão-de-obra requer longo prazo.
Valor: Mas houve inclusão, não?
Lena : Inclusão pelo mercado, mas não se está gerando uma sociedade mais igualitária e mais homogênea. Gerou uma incorporação de 40, 50 milhões de pessoas ao mercado, o que é muita coisa. Mas a prova de que isso não é a construção de uma classe média é que o retrocesso é muito patente. Poderíamos ter tido uma outra matriz de investimento público, que teria gerado mais empregos, elevado a produtividade do trabalho. Foi um modelo de desenvolvimento de curto prazo que, do meu ponto de vista, atende a uma expectativa política. Não por acaso o ex-presidente Lula, na semana passada, dizia que temos que, de novo, expandir o crédito. Me parece uma alternativa completamente equivocada. Ademais, ele citou como exemplo que 20% das famílias ainda não têm máquina de lavar. Esqueceu de dizer que o percentual sem saneamento é de 35%.
Valor: E o Bolsa Família?
Lena : Todo mundo gosta do Bolsa Família: é barato e tem impacto. Mas se tudo se resumisse a ter dinheiro, não precisaria do Estado. Se vamos enfrentar a pobreza, vamos enfrentá-la seriamente, com investimento social de longo prazo. Demora mais, custa mais. Por que o programa Minha Casa, Minha Vida não avançou? Porque demandava muito mais recursos. E acaba de ser cortado.
Valor Econômico – SP