Entrevista com Li Edelkoort, pesquisadora e consultora de tendências
Depois de anunciar a morte da moda em um manifesto internacional, a consultora agora mostra o caminho para a ressurreição
Carolina Vasone
ESPECIAL PARA O ESTADO
A holandesa Li Edelkoort é uma espécie de oráculo quando o assunto é identificar o atual e os próximos movimentos da moda.
À frente do Trend Union, bureau de estilo baseado em Paris, com escritórios em Tóquio e em Nova York, a pesquisadora tem clientes tão variados como Prada e Zara, Nissan e Coca-Cola.
Em suas consultorias, ela pode desde ajustar a comunicação visual de um carro japonês para o mercado europeu até dar conselhos sobre a fragrância de um novo perfume com base nos anseios de um determinado público feminino.
Aos 65 anos, boa parte deles entregues a viagens pelo mundo para mapear desejos que as pessoas ainda não sabem que terão, Li observa tudo de perto, nas ruas de Kyoto, São Paulo, Nova York ou Nova Délhi.
Por isso, quando divulgou seu Manifesto Antifashion em fevereiro, o mundo da moda parou para ouvir o que ela tinha a dizer.
Nele, ela lista dez motivos pelos quais o sistema da moda está obsoleto e decreta o seu fim como radar de transformação social.
A seguir, os principais trechos da entrevista concedida por telefone ao Estado.
Quando declarou que a moda morreu, você quis dizer que daqui por diante este será um negócio onde a criatividade não é mais o foco do produto, algo como o mercado de canetas ou de parafusos?
O que está acontecendo é que, por alguma razão, as pessoas estão focando nas roupas e nos acessórios e não estão mais interessadas em dar uma contribuição conceitual para o mundo.
Nós perdemos a ideia da moda como possibilidade de nos transportar, de nos transformar, nos educar.
A moda sempre foi um indicativo para onde o mundo estava indo, você podia ler a moda como um guia sobre a transformação da sociedade.
Isso não existe mais, não há mais discussão, há apenas vestidos tipo envelope, saias godê, todos esses itens que podem ser muito legais e bonitos.
Mas não é só disso que é feita a moda.
Sem novidade, as pessoas vão continuar comprando roupas?
Elas já não compram roupas como antes.
Não há motivo para comprar peças repetidas.
Toda a energia da moda se voltou para o marketing dos acessórios.
As marcas de luxo transformaram a roupa no acessório dos acessórios.
Ela não deve concorrer com as bolsas, que são muito mais lucrativas.
A indústria da moda quer ganhar dinheiro, mas criou um mecanismo que está matando ela própria.
É como comer o próprio rabo.
Na última vez em que esteve no Brasil, no início de 2014, você declarou que a inovação não está mais na moda, mas no design. O que fez com que a moda perdesse essa característica?
O design está cheio de disciplina, energia jovem, tem esse frescor de uma área que está apenas começando a se desenvolver agora em alguns países como o Brasil.
Eu acredito, porém, que o Hemisfério Sul pode liderar um renascimento da moda no mundo.
Para isso ele tem de encontrar a própria identidade, vestir-se da maneira que quiser, sem se inspirar por nenhum outro país de cultura ocidental.
Espero diariamente pelo momento em que o Hemisfério Sul olhe para si mesmo e diga: Nós estamos à frente do design europeu e americano.
Não um ano e meio atrás ou seis meses antecipados.
Isso vale para o Brasil, a Índia, a África e a Austrália.
Mas o Brasil tenta ter relevância na moda internacional há algum tempo. O conselho de olhar para as próprias raízes já foi dado, mas ainda não estamos sendo bem-sucedidos. O que precisamos fazer para ganhar importância na moda mundial?
O problema é que muitas marcas e profissionais envolvidos na moda brasileira se inspiram nas roupas europeias.
Visitar a semana de moda em São Paulo é como visitar a semana de moda em Londres, Paris ou Milão.
Vocês não ainda têm personalidade.
O que conecta os países do Hemisfério Sul em termos de estilo?
Vocês são muito fetichistas, têm uma necessidade de cor que não existe no Hemisfério Norte, têm uma maneira de combinar tudo que é muito mais livre.
Todos esses ingredientes formarão, de alguma maneira, a atmosfera do design do Hemisfério Sul.
Há muitas similaridades entre Brasil, África, Índia e Austrália.
E em termos de qualidade de acabamento e tecidos, o Brasil conseguirá competir com o knowhow europeu?
Bom, as roupas hoje são feitas na China, não são mais feitas na Europa, então isso não é um problema.
O fast fashion democratizou o acesso à informação de moda. Ao mesmo tempo, sua dinâmica é a de copiar sem criar, de usar mão de obra barata e com péssimas condições de trabalho de países como a China. Você consegue enxergar o lado bom do fast fashion ou ele é um grande vilão na indústria da moda?
Eu gosto dessa ideia de democratizar o design de moda, mas em muitos casos, os produtos são feitos sob terríveis circunstâncias, com o trabalho infantil, em condições de trabalho análogas à escravidão.
Não é possível que uma roupa seja mais barata do que um sanduíche.
Pense em todas as etapas: modelar, costurar, bordar, estampar, aplicar o logo, transportar.
Há sangue nessas roupas, e essa relação é muito injusta, porque é difícil para os jovens que querem se sentir bonitos não comprar essas roupas e, por isso, não há um boicote do público em geral.
Espero que haja uma legislação em breve que proíba a venda de roupas abaixo de um certo preço.
Na Europa, nós fazemos isso na agricultura.
Há um preço mínimo para tomate, batata e assim por diante.
A natureza está entre uma de suas principais fontes de inspiração. A sua revista Bloom’, que tem como tema a horticultura e a relação com a moda, vai ganhar uma segunda edição brasileira?
Sim, a revista foi bem-sucedida e nos ajudou a entender afinal o que é o Brasil.
Mas é claro que com um livro você não esgota tudo, há muito o que ver, descobrir e mostrar do Brasil.
Na próxima edição, estou interessada no que estou chamando de o ouro do Brasil, em tudo o que é amarelo, dourado: milho, pedras, o próprio ouro.
Há uma série de riquezas nesse aspecto.
Você declarou em um manifesto que a moda morreu. Qual seria a maneira de renovar esse sistema obsoleto?
É preciso se unir, ser um time, fazer parcerias e projetos juntos, integrar disciplinas como arte, dança, música, design.
Mas a moda não faz ideia de como se comportar.
O mundo fashion está muito old fashioned.
Ele não consegue entender que a nova geração não quer ser esse indivíduo solitário.
Ela quer estar próxima das pessoas.
É preciso questionar tudo, porque todo o sistema da moda está fracassando: marketing, editoriais, roupas.
O conceito é velho, vindo dos séculos 19 e 20.
Até os consumidores estão fracassando, porque estão se fazendo bonitos de outra forma, com tatuagens, penteados, brincos.
Eles se tornaram tribais, chamando muita atenção para os próprios corpos, de maneira que não precisem mais da moda.
Talvez estejamos no processo de desenvolvimento de seres humanos que não precisam ser cobertos da mesma maneira que antes.
O Estado de S. Paulo – SP