O Brasil tem, enfim, um ministro da Fazenda. Por definição, ministros da Fazenda são aqueles que defendem o erário, opondose à privatização da coisa pública, que se dá, na maioria absoluta dos casos, sob a justificativa de que alguns setores são mais “estratégicos” que outros& 894; são os que preservam, como mandato primordial e inalienável de sua função, a disciplina fiscal, sem a qual, não há estabilidade econômica nem muito menos desenvolvimento sustentável e inclusão social& 894; são aqueles que rejeitam a ideia de que um pouco mais de inflação favorece o crescimento.
Em todos os momentos em que se pronunciou desde o anúncio, há pouco mais de um mês, de sua nomeação para o comando da economia brasileira, Joaquim Levy enunciou esses princípios. Por meio deles, deixou clara sua enorme divergência com o antecessor, Guido Mantega, que cometeu a descortesia de não lhe transferir o cargo melhor assim: Paulo Caffarelli, que aceitou a indigesta missão de acudir, no posto de secretárioexecutivo, o exministro no início de 2014, cumpriu o rito de consciência tranquila, afinal, não teve nada a ver com a política econômica ruinosa dos últimos seis anos.
No discurso de posse, uma peça de valor histórico, Levy mostrou a importância do equilíbrio fiscal para a estabilidade e a confiança dos empresários e do sistema financeiro na economia e, portanto, para “a geração de emprego, o bemestar geral e a riqueza da nação”. Ele lembrou que foi o ajuste fiscal que antecedeu o Plano Real um dos principais fatores do sucesso da estabilização que derrotou a inflação crônica. O ministro também destacou que foi a responsabilidade fiscal da primeira metade dos anos 2000 que autorizou, nos anos seguintes, a adoção de políticas de inclusão social, responsáveis por retirar milhões de brasileiros da extrema pobreza. A responsabilidade fiscal foi igualmente indispensável para que o país chegasse à crise de 2008 em condições de pôr em prática uma política anticíclica. Na extraordinária entrevista que deu a Cláudia Safatle (Valor, 29/12/14), Levy deixou claro que o atual governo queimou em grande medida as “reservas fiscais” acumuladas no período 20042008, o que se refletiu na forte elevação da dívida pública. “O importante é entender que tentar combater a queda na criação de empregos e no crescimento do PIB, que vem acontecendo há algum tempo, com mais expansão fiscal não tem aderência com a realidade e seria perigoso”, advertiu.
Nessa linha, fez um alerta importante ao governo que lhe pode ser hostil em questão de dias ou semanas: foi por tentar sustentar o crescimento e manter o desemprego baixo por meio de desonerações tributárias e expansão do crédito garantida pelo Tesouro, fechando os olhos para o aumento da alavancagem de famílias e empresas, que o governo Bush arruinou a política econômica e arrastou os Estados Unidos e o mundo para a crise mais severa desde 1929. “O coquetel se completava com o corte de impostos para agradar parcelaschave do eleitorado e algum protecionismo”, observou Levy. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência. Na entrevista, o ministro alertou para os riscos deste momento. A desafiadora conjuntura internacional tende a reduzir os fluxos de investimento estrangeiro e a diminuir os preços das commodities, obrigando o país a reequilibrar o balanço de pagamentos. É por essa razão que ele elencou a necessidade de aumento da poupança interna, para reduzir a dependência de capital externo, como uma das prioridades de sua gestão. E, dentro do mesmo esforço, mencionou a necessidade também imperiosa de realinhamento dos preços relativos e dos administrados.
Há um conceito caro a Levy, o de dualidade, uma referência suave à velha mania brasileira de se institucionalizar divisões de categoria nos vários ramos da vida nacional, sob o falso manto da proteção aos menos favorecidos no fim, os subsídios vão sempre para quem pode mais, perpetuando e aprofundando desigualdades. A Cláudia Safatle, ele mencionou a necessidade de acabar com a dualidade do sistema de crédito, isto é, a coexistência de um mercado de taxas de juros livres com outro, de crédito direcionado e subsidiado, que, entre outras distorções, diminui a potência da política monetária, penalizando mais quem tem menos acesso ao crédito oficial (pequenas e médias empresas e famílias de baixa renda).
“Não custa lembrar: em geral, quando acaba a dualidade, muito mais gente tem acesso ao bem ou serviço”, disse Levy, citando o ensino superior e o mercado de trabalho. O ideário é claro. Levy diz que o Brasil precisa abrir a economia, não necessariamente para aumentar as exportações, mas porque, submetidas à concorrência internacional, as empresas serão forçadas a serem mais competitivas. O protagonismo para que elas passem a integrar cadeias globais de geração de valor não pode ser do governo. A este cabe criar as condições por meio de uma política econômica equilibrada e de medidas como a simplificação tributária e a assinatura de tratados comerciais. Muitos entenderam que, no discurso de posse, Levy sinalizou elevação de impostos, mas, na verdade, ele disse que pretende ajustar alguns tributos, “especialmente aqueles que tendam a aumentar a poupança doméstica e reduzir desbalanceamentos setoriais da carga tributária”.
O que se deve esperar de sua gestão, portanto, são iniciativas para estimular o aumento da poupança interna, entre outras medidas justiça seja feita: há pelo menos cinco anos, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, vinha tentando convencer Guido Mantega a adotar medidas efetivas nessa direção& 894; chegou a conversar com os bancos e algumas medidas até saíram do papel, mas tudo muito modesto diante do que ele propunha. Por fim, em seu discurso, Levy fez um elogio irônico à chefe: “Talvez, nunca antes na nossa história, em períodos democráticos, houvéssemos tido a maturidade, como país, de fazer correções bem antes que uma crise econômica se instalasse”. Algo como: “Estou aqui, nesta função, para evitar uma crise”. Um alerta de sua importância. Em Brasília, o fogo amigo, do qual Levy não escapou quando esteve pela primeira vez num governo do PT, já mostrou suas labaredas: segundo os prognósticos, ele não passará de um ano no cargo.
Outros dizem assim: “Ele fará o ajuste e logo depois será dispensado”. Esse é, talvez, o maior desafio de Levy: fazer o que tem que fazer e, ainda assim, sobreviver ao fogo amigo. Cristiano Romero é editorexecutivo e escreve às quartasfeiras Email: cristiano.romero@valor.com.br
Valor Econômico – SP