Não será fácil. Nem breve. Nem indolor. Na verdade, neste momento o Brasil mergulha no pior estágio da pandemia de coronavírus. O número de casos e mortos cresce (125 mil infectados e 8,5 mil óbitos na manhã de quinta-feira 7) e o sistema de saúde está saturado ou perto de colapsar em diversas grandes cidades. Para piorar, de Brasília nunca partiu gestão centralizada e séria para a crise. O oposto. Houve deliberada desobediência oficial à quarentena. O que, dado o desgoverno escolhido em outubro de 2018, nem mais é surpresa. Ainda assim, ou exatamente por isso, as lideranças do mundo do trabalho precisam olhar para frente. Não se trata de opção. “What matters most is how well you walk through the fire” – resumiria o autor americano Charles Bukowski. “O que mais importa é quão bem você atravessa o fogo.”
DINHEIRO ouviu uma centena de lideranças – de empresas de todos os segmentos e tamanhos a entidades classistas – sobre o cenário pós-pandemia (veja a lista completa ao fim desta reportagem). Elas construíram três eixos: o econômico, o novo comportamento do consumidor e o de transformação digital. Trata-se do mais abrangente painel sobre o Brasil depois da crise de Covid-19 na avaliação das pessoas que ocupam a linha de frente real – o mundo do trabalho. Um capital intelectual que aponta muita resiliência. “Devemos discutir a criação de um novo normal pós-pandemia”, diz Walter Schalka, presidente da Suzano, companhia de R$ 26 bilhões em receita (2019).
“O brasil pós-pandemia pode ser resumido em uma única palavra: solidariedade” Carlos Wizard Martins, Ceo do Grupo Sforza
Esse novo normal de que trata Schalka é como linha divisória. Uma releitura do a.C e d.C (antes e depois do coronavírus). Pablo Di Si, CEO da Volkswagen, concorda e refere-se ao fim de uma Era. “O mundo pré-Covid-19 não existe mais.” O problema é que não há outro no lugar. Terá de ser construído. Di Si resume também a percepção de todos os entrevistados: a tão aguardada disrupção ocorreu. E não veio da tecnologia. Mas de um vírus. Marc Reichardt, presidente da Bayer no Brasil, é igualmente categórico em relação ao cisma. “Vivemos hoje momentos sem precedentes.” Na prática, as decisões estratégicas e táticas das corporações ruíram. E não há qualquer parâmetro usual de previsibilidade. “Agora trabalhamos cenários de curto prazo, que são mais analisáveis”, afirma Reichardt. O futuro está suspenso.
Além desse momento turning point da humanidade, que tirou do eixo as empresas, outra quase unanimidade de respostas entre os 100 entrevistados é a de que o estrago econômico para 2020 está consolidado. O que muda nas opiniões é o grau de intensidade, a velocidade e a duração. Mesmo entre aqueles que dizem não ter condições de fazer análise mais aprofundada, pela incerteza dos dados disponíveis. Tornou-se uma avaliação transversal. João Pedro Paro Neto, presidente da Mastercard Brasil e Cone Sul, acredita que será difícil ser como antes ainda este ano. “A economia deve voltar devagar, porque nos países em que a retomada começa a acontecer ela é lenta, não existe abertura total, é uma abertura restrita, cheia de condições.” Há, do outro lado, quem vislumbre um estrago mais acentuado. Robson Braga de Andrade, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), diz que o mundo enfrenta a mais grave crise da história recente. “Os efeitos são devastadores, tanto na saúde quanto na economia das nações.”
RECUPERAÇÃO Para as lideranças entrevistadas, as variáveis de recuperação da economia só não coincidem em relação ao modelo da curva de retomada. Se em V (queda rápida, recuperação igualmente rápida), em U (queda rápida e recuperação um pouco mais lenta) ou em L (queda rápida e certa estagnação antes de recuperação no longo prazo). A única constante nessa sopa de letrinhas é a queda abrupta. O que virá depois ainda está no terreno movediço da incerteza. Segundo Miguel Duarte, líder da EY para o mercado de bens de consumo e varejo para Brasil e América Latina, “o desemprego gerado deverá criar dificuldade para a recuperação em V.”
É consenso que acelerar a retomada exigirá políticas públicas de ajuda que precisam ser assertivas e cirúrgicas, sem empurrar o País para um novo pântano fiscal, o que não parece claro até aqui. De toda forma, uma terceira e última quase unanimidade apareceu fortemente nas entrevistas – além da disrupção e da crise econômica. A de que sairemos dessa. Não houve sequer uma resposta que se assemelhasse a jogar a toalha. “O Brasil é resiliente”, diz a esse respeito Glauco Humai, da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce). “Um País que mesmo nas adversidades consegue seguir em frente.”
COMO SURFAR A ONDA 2021
Duas certezas conduzem a questão relacionada ao comportamento da economia para o momento pós-pandemia e, em especial, para 2021. Haverá queda e haverá crescimento. O Bradesco trabalha com projeção de redução de 4,0% no PIB deste ano e alta de 3,5% no do ano que vem. O Itaú Unibanco projeta respectivamente -2,5% e elevação de 4,7%. Com ambos ressalvando que são índices que dependem de um amplo leque de variáveis.
Fernando Honorato Barbosa, economista-chefe do Bradesco, diz que nos próximos 30 a 60 dias vários países iniciarão formatos distintos de relaxamento do período de quarentena. “O aprendizado das experiências que irão funcionar e aquelas que não irão deve ser aplicado no Brasil. Com isso, esperamos que a economia se recupere gradualmente a partir de julho.”
Outro ponto destacado por boa parte dos 100 líderes entrevistados é que haverá forte heterogeneidade no comportamento dos diferentes segmentos empresariais. André Coutinho, líder de mercados da KPMG no Brasil, diz que algumas áreas não estão experimentando tanto os efeitos da pandemia. “É importante setorizar essa crise.”
“Haverá mais planejamento. O país terá uma nova cultura, voltada mais à saúde e investir em saneamento básico será visto como investimento na saúde pública” Paulo Hoff, Presidente, Rede D’or
Marcus Granadeiro, CEO do Construtivo, companhia focada em soluções de TI para o setor de engenharia e construção, acredita que o ambiente depois do isolamento será de um pós-terremoto. “A economia, de maneira geral, estará ruim e a retomada será gradual, porém com muitas oportunidades. Quem conseguir enxergar nichos, se transformar, vai pegar carona nessas oportunidades”, afirma. Seu raciocínio tem ecos no de Francisco Sant’Anna, presidente do Instituto dos Auditores Independentes do Brasil (Ibracon). “As pessoas dizem que vivemos uma guerra. Geralmente, o pós-guerra vem acompanhados de crescimento.”
Nas conversas — virtuais — de André Coutinho, da KPMG, diversos clientes e players revelam otimismo para o ano que vem. Se Brasília deixar, vale ressaltar. “Vou extrair o debate político e a confusão toda, mas para 2021 me parece existir consenso de que será um ano bom. Tem gente falando em crescimento de 5%, 6%.” Para aproveitar a onda, é preciso que empresas de todos os portes observem com minúcia as possíveis oportunidades.
Carlos do Carmo Andrade Melles, presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), diz que na China já se percebe uma retomada, ainda que lenta, à normalidade. “Além disso, existe outro movimento importante, o de grandes economias mundiais, como Estados Unidos e Japão, começando a reduzir sua dependência da China. Isso certamente vai gerar forte impacto na economia.”
Outro padrão nas respostas dos entrevistados é que pegar carona num potencial crescimento para o próximo ano exigirá, acima de tudo, atenção a esse novo mundo. Como diz Henrique Carbonell, CEO da F360, plataforma de gestão financeira, há motivo para se animar com 2021. “Haverá crescimento e retomada do consumo”, diz. E um ponto será decisivo: “Respeitar os novos hábitos do consumidor e as novas formas de se relacionar.”
CONECTADOS NA LINGUAGEM
Quarteto de peso, este. Fernando Meirelles (cineasta), Julio Andrade (ator), Lázaro Ramos (ator) e Lenine (músico) ajudam a compor o painel de 100 lideranças brasileiras que mergulharam na questão sobre para onde vai o planeta pós-pandemia. E é na semântica que dão o tom e criam a harmonia. Perguntados sobre quais palavras marcam o mundo antes e depois da crise de Covid-19 eles apontam para um universo ainda incerto, mas em reconstrução. Eliminam os vocábulos Histeria, Ganância, Polarização e Míope. No lugar escalam Tensão, Solidariedade, Comunidade e Frágil. Amarram aqui o cenário construído por todos os demais 96 entrevistados: a passagem de um mundo adoecendo para outro a ser moldado. “Sairei transformado desta”, diz Meirelles.
O cineasta, aliás, lembra a metáfora citada pela ativista ambiental sueca Greta Thunberg — “Nossa casa está pegando fogo” — para mudar o estilo de vida. “Este vírus nos mostrou que é possível parar. Talvez seja a última oportunidade de ao menos retardarmos o que já está no mapa: a Covid-19 é uma pulguinha insignificante frente à crise do clima. É a hora”, afirma. Outro impacto relevante, segundo ele, virá do trabalho. Meirelles conta que nos dois últimos meses sua produtora (a O2) tem filmado comerciais com sete ou oito pessoas, “e não mais 90”. A montagem e a pós-produção são feitas nas casas dos profissionais. E as reuniões, por WhatsApp. Todo o protocolo e ritual de encontros intermináveis com clientes e agências caiu. “Isso pode gerar perda de empregos, fato, mas a eficiência do novo modelo é espantosa.”
ECONOMIA SOLIDÁRIA Para o ator Julio Andrade, essa mudança significativa se dará não apenas com profissionais liberais, mas também pequenos produtores rurais. As duas categorias vão ganhar mais espaço. “Justamente por precisarem se reinventar durante a pandemia”, diz. “Penso que teremos uma economia mais solidária, com um olhar mais voltado às classes menos favorecidas. O mundo estava vivendo tempo de economia muito agressiva.” O músico e compositor Lenine compartilha da percepção de uma jornada em transição. “Os donos do mundo continuarão os mesmos.” Mas aposta numa virada. “Sou otimista e acredito que, depois desse sofrimento, o melhor futuro para o planeta será o conceito da economia circular.”
A transformação no modelo econômico é o que também mais parece próximo de ser revolucionado após a pandemia de acordo com o ator Lázaro Ramos. “A economia vai ter de repensar seu modelo de distribuição de renda, do tamanho dos lucros das empresas e da relação da sociedade com o consumo”, diz. “Um novo formato econômico, que não é o socialismo, mas me parece que vai ser uma transição forte do capitalismo atual.” Para os quatro, o coronavírus mostrou-se agente de um limiar. Um objeto transformador.
SEU NOVO REI: O CONSUMIDOR
Servir sempre para servir bem. Esse é o novo mantra. Se há algo que a Covid-19 ensinou ao varejo e a empresas de todos os tipos de produtos e serviços é que o atendimento terá de ser full para ser bom. Todos os formatos de pagamento. Todos os formatos de entrega. Todos os formatos de relacionamento. E acima de tudo, endereços físicos e virtuais. De forma cruzada, paralela, sobreposta. Uma jornada sem fim que pode começar no Instagram e terminar com o motoqueiro na porta. Entre os 100 entrevistados para o painel pós-pandemia, seis eixos se destacarão desse novo consumidor.
“Esperança é a palavra para o novo mundo. e acredito na força transformadora do trabalho” Rogelio Golfarb, Vice-presidente da Ford América Do Sul
CONFIANÇA Reinaldo Varela é fundador e presidente da rede de restaurantes Divino Fogão, com mais de 180 lojas no Brasil. Para ele, a mudança sem volta será o grau de confiança entre pessoas e empresas. “O consumidor vai ficar mais próximo das marcas que se mostraram solidárias durante a crise.” E isso se estenderá no relacionamento pós-pandemia.
STAY HOME Ficar em casa será o novo padrão. “Haverá priorização para o ambiente doméstico, os espaços para o home office”, diz Leonardo Paz, CEO da ImovelWeb. O que deve impactar não apenas o segmento imobiliário ou de decoração, mas todas as cadeias de produtos e serviços.
CUSTOMIZAÇÃO Dentro das tendências que o varejo deverá viver de forma mais contundente Nabil Sahyoun, presidente da Associação Brasileira dos Lojistas de Shopping (Alshop), aposta na ultrapersonalização do atendimento. “A customização e a experiência do cliente vão mudar.”
‘DELIVERY’ DE SERVIÇOS Não apenas o delivery ou e-commerce de produtos irão se sedimentar, segundo André Friedheim, presidente da Associação Brasileira de Franchising (ABF). “Irão aumentar potencialmente as demandas por serviços a distância.”
RELACIONAMENTO Fabio Fossen, presidente da Bridgestone Latin America South, acredita em novo patamar na relação consumidor-marca. Uma fronteira ainda nem de perto resvalada. “A sociedade observará mudanças na intensidade das formas de consumir e de se relacionar com as empresas”.
SOLIDARIEDADE Cuidar do outro será o novo ativo para as marcas trabalharem. Para Guilherme Priante, fundador e CEO da Beyoung, do segmento de beleza, o autocuidado vai crescer e impulsionar o cuidado mútuo. “A onda da solidariedade vai se enraizar culturalmente”, diz.
Fonte: Istoé Dinheiro