O modelo tradicional de quatro partes do mercado de cartões — formado por bandeiras, bancos, credenciadoras e varejistas — está ficando para trás, depois de vigorar por décadas no mundo todo.
Novos participantes e tecnologias surgiram, criando alternativas às “maquininhas” e aos cartões usados nas transações, a exemplo das transferências instantâneas e do QR Code, que obrigou as empresas mais antigas a se reinventarem.
No Brasil, a “guerra das maquininhas”, que se acentuou nos últimos meses, acelera a transformação do mercado de pagamentos. Em jogo, está um setor que transacionou, no ano passado, R$ 1,55 trilhão, um avanço de 14,5% em relação a 2017, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs). O volume corresponde a 38% do consumo das famílias, bem abaixo do potencial, o que explica em parte por que tantas empresas entraram no mercado nos últimos anos.
“O modelo de pagamentos foi de quatro partes para inúmeras partes”, diz Percival Jatobá, vice-presidente de produtos da bandeira Visa no Brasil. Há cerca de sete anos, a empresa decidiu mudar de postura: não ditaria mais o futuro da indústria de pagamentos, mas passaria a desenvolvê-la de maneira colaborativa. Dessa forma, abriu suas APIs (interfaces de programação de aplicativos, na sigla em inglês) para desenvolvedores.
Responsáveis por manter os ambientes para bancos e credenciadores se conectarem e poderem oferecer pagamentos com cartões, as bandeiras têm apostado no desenvolvimento de plataformas para os pagamentos instantâneos e em tecnologias antifraude.
A Visa trouxe em março para o Brasil o Visa Direct, que permite transferências imediatas a portadores de cartões da bandeira. Já a Mastercard quer conectar todos os bancos emissores até o início de 2020 no Mastercard Send, que transfere valores em até 30 minutos.
Está em curso um processo de “uberização” da experiência, define Gilberto Caldart, presidente da Mastercard International, responsável por todos os mercados fora dos Estados Unidos e do Canadá. “A ideia é que o consumidor pague como achar melhor”, diz.
A atuação do Banco Central tem incentivado as mudanças no setor. O primeiro grande passo foi dado anos atrás, com a quebra do monopólio de Visanet e Redecard (atuais Cielo e Rede) nas transações com Visa e Mastercard, respectivamente. Hoje, as duas credenciadoras têm cerca de 70% de participação no volume de transações.
Com a competição mais forte, o BC olha agora para a tecnologia. O presidente da autarquia, Roberto Campos Neto, já disse que deve lançar o serviço de pagamentos instantâneos no país em 2020. Nele, a ideia é que os recursos da compra entrem na conta do fornecedor em tempo real, independentemente do dia e da hora, através da liquidação centralizada no próprio BC. Os pagamentos poderão ser feitos via QR Code, dispensando as “maquininhas”.
“Os pagamentos instantâneos mudam a dinâmica: hoje, boa parte dos movimentos financeiros é realizada por cartões de crédito e débito, com autenticação via adquirentes e birôs. A possibilidade de o BC fazer uma gestão direta é uma ruptura do modelo atual”, diz Yoshimiti Matsusaki, presidente da empresa de automação e gestão financeira Finnet.
A tendência é que os consumidores passem a ter carteiras digitais para pagamentos e transferência de valores, concentrando cartões de crédito, débito e valores depositados num só lugar. É um desafio para os bancos na condição de emissores de cartões. “As instituições financeiras vão ter de trabalhar o valor agregado do serviço e do produto para que seja vantajoso ter aquele cartão”, diz.
No entanto, a transformação mais visível no Brasil até agora tem sido na ponta das adquirentes, responsáveis por credenciar os varejistas para aceitar as transações. O mercado era concentrado até 2012 em duas companhias: a Cielo, cujos acionistas são Bradesco e Banco do Brasil, e a Rede, do Itaú Unibanco.
Num primeiro momento, a chegada de novos competidores como PagSeguro, do grupo UOL, e Stone mudou a estratégia comercial, com as empresas, que antes só alugavam maquininhas, passando a vendê-las também.
A chegada de novos competidores também forçou a redução do MDR, a taxa de desconto cobrada dos lojistas a cada transação. Porém, a fase mais recente se caracteriza por uma nova disputa de preços, que se acentuou a partir de maio. As empresas ligadas a bancos, que têm balanços robustos a seu favor, passaram a reduzir ou zerar a taxa de antecipação de recebíveis cobrada dos varejistas que querem receber adiantado o fluxo das vendas com cartão de crédito.
Algumas empresas responderam com o lançamento do pagamento instantâneo aos lojistas, a exemplo da Cielo e da PagSeguro, que depositam nas contas dos varejistas na mesma hora os fluxos das compras feitas com cartões de débito e crédito à vista.
A Cielo, por sua vez, fechou em março contrato com a Visa Direct, e atuará como processadora, trazendo para a plataforma da bandeira as empresas interessadas em receber instantaneamente pagamentos.
O que as movimentações mais recentes mostram é que nunca foi tão importante ter uma ampla base de maquininhas, mas, paradoxalmente, o valor do negócio reside cada vez menos na captura das transações. A tendência, segundo analistas, é que as margens da atividade de credenciamento se aproximem do nível de 15% a 20% praticado no mercado internacional — bem distante dos mais de 50% que Cielo e Rede já ostentaram.
Bancos e credenciadoras querem estar nas lojas principalmente para oferecer aos varejistas crédito garantido pelos recebíveis de cartões, conta corrente ou de pagamentos e outros serviços. É por isso que instituições financeiras que não têm uma empresa de maquininhas procuram fazer parcerias — casos do Original, com a Cielo, e da Caixa, que lançou concorrência para fazer um acordo com alguma das empresas do setor.
Os bancos vêm usando sua força financeira para conter o avanço das novas credenciadoras. Banco do Brasil e Bradesco, acionistas da Cielo, apoiam a estratégia da empresa de sangrar a rentabilidade para ganhar market share, ao mesmo tempo em que vendem “maquininhas” em suas agências.
O Itaú tem sido o mais agressivo. A Rede, credenciadora do banco, lançou estratégia para isentar os clientes da taxa de antecipação dos recebíveis. Nesta semana, o Itaú deu um novo passo e lançou a plataforma “iti”, de transferências instantâneas, com custo para o lojista inferior ao cobrado pela própria Rede.
O Santander, por sua vez, estuda o lançamento de pagamentos via QR Code no segundo semestre deste ano e também aposta no Santander Pass, que permite fazer compras por aproximação, seja com cartões, relógios ou pulseiras. Ao mesmo tempo, o banco aposta na Getnet, sua credenciadora, para avançar em serviços a pequenos empreendedores e lojistas.
“Na cadeia de valor de pagamentos, a adquirente vai se tornar apenas uma empresa operacional para os bancos protegerem o relacionamento com o cliente. Para rentabilizar o negócio de pagamento, eles estão desenvolvendo as novas tecnologias”, diz Fabricio Winter, gerente de projetos da consultoria Boanerges & Cia.
Dentre as credenciadoras independentes, a Stone tem escolhido se distanciar da figura de empresa de pagamento ao agregar soluções como crédito e software de gestão do negócio a varejistas. “Estamos ajudando os clientes a gerir melhor o seu negócio”, disse Thiago Piau, presidente da Stone, em teleconferência com analistas.
Já a PagSeguro lançou uma conta digital com serviços bancários para varejistas e, agora, também para pessoas físicas, dando início à operação do banco digital PagBank. Ricardo Dutra, presidente da empresa, disse que quer liderar a inclusão do sistema financeiro. “Temos escala e conhecimento inclusive para negócios bancários”, afirmou a analistas.
As varejistas também entraram na disputa por pagamentos, lançando soluções como transferências via carteiras digitais ou QR Code. Entre os exemplos mais claros está o do Mercado Pago, conta digital do Mercado Livre. Antes limitada a operações on-line, já permite compras no mundo físico com QR Code. A Via Varejo, por sua vez, tem parceria com a AirFox Brazil para pagamento das compras por transferência em aplicativos.
Fonte: Valor Econômico