Da indústria de roupas ao agronegócio, a palavra do momento nas discussões sobre estratégias mais sustentáveis nos negócios é rastreabilidade. Na definição mais básica do termo, é saber como, quando e de onde vem um produto. Em termos práticos, é ter um sistema de manutenção de registros projetado para rastrear o fluxo do produto através da cadeia de suprimentos.
Parece um conceito simples. Mas, infelizmente, os amantes de frutos do mar raramente sabem como um peixe chegou à gôndola do supermercado. Pior: talvez nem imaginem que a falta de transparência pode encobrir uma série de abusos e irregularidades, como a pesca insustentável (aquela que não respeita as condições da espécie nem seu ecossistema), fraudes em contratos, riscos para a saúde e até mesmo condições de trabalho impróprias.
Empenhado em contribuir para a sustentabilidade dessa cadeia, nesta semana o Carrefour Brasil anunciou um projeto para mapear a partir deste ano a sua cadeia de fornecimento de pescados e identificar oportunidades para garantir melhoras práticas em todo o processo de criação (no caso de aquiculturas) e pesca (no caso de capturas no mar).
Para isso, o Carrefour firmou uma parceria com o programa Seafood Watch, pertencente ao Monterey Bay Aquarium, ONG norte-americana voltada à conservação dos oceanos, que conta com o suporte da Paiche, consultoria brasileira em sustentabilidade de pescado.
Em entrevista ao site EXAME, Paulo Pianez, diretor de Sustentabilidade do Carrefour Brasil, conta que essa parceria não tem vínculo algum com a ação recente de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que multou a empresa e embargou as vendas de pescados de outras duas grandes varejistas pelo comércio dos alimentos sem comprovação de origem.
Na ocasião, a rede informou que a comercialização de pescados em suas lojas segue rígidos padrões de qualidade e origem, respeitando a legislação vigente, e que reforçou junto aos seus fornecedores que o registro geral de pesca (RGP) é uma exigência para fornecimento à rede, que não aceitará entregas com inconformidade neste dado.
“Nosso plano de monitoramento vem de antes. Na França, o mapeamento de toda cadeia já foi feito há mais de 3 anos. Nossas conversas com potenciais ONGS parceiras para implementar o projeto no Brasil começaram há mais de um ano e realizamos no ano passado o primeiro fórum com nossos fornecedores sobre a importância do mapeamento da cadeia”, diz Pianez ao site EXAME.
Confira na entrevista a seguir como será o plano do Carrefour para monitorar o peixe que chega ao seu prato.
Como será o controle das cadeias de suprimento de pescados desde a origem até o consumo?
Quando falamos de cadeias de pescados, cada uma tem uma realidade. Tem as cadeias de peixes relacionados à água salgada, ao mar, as cadeias de peixe de água doce, além das de frutos do mar, como os crustáceos. Temos um rol de fornecedores que abrange todos esses produtos.
Primeiramente, faremos o mapeamento de quais são as espécies de peixes mais vendidas. Em cima delas realizaremos uma análise para ver quais espécies que podem estar sob ameaça, já que são as mais pressionadas. Também analisaremos o método de pesca para impedir práticas danosas à espécie, como a pesca em época de defeso [que engloba o período de reprodução ou ainda de maior crescimento do peixe] e que causam impacto ambiental. Além disso, olharemos pela ótica social, chegando até as condições de trabalho pescador.
Qual o caminho e etapas necessárias para garantir a origem responsável de um peixe?
O caminho na aquicultura é mais simples. Conseguimos mapear desde a produção do alevino [peixes recém saídos do ovo], passando pela engorda, até o processo de preparação desse peixe para filetagem ou para que chegue inteiro no mercado. E esse mapeamento olha vários aspectos: a forma como é produzido, o tipo de ração, a qualidade dos tanques (manejo) e todas as condições sociais atreladas.
Agora, quando falamos de um peixe de pesca marinha, aí muda um pouco de figura. Vamos olhar por exemplo onde acontece a pesca em mar aberto, qual o entreposto que faz a centralização e recebimento desses pescados, qual a destinação do frigorífico até chegar nas nossa gôndolas.
O que determinou a escolha da ONG parceira?
A escolha do programa Seafood Watch tem a ver com a importante dimensão de seu trabalho no exterior. Ele está vinculado ao renomado Monterey Bay Aquarium, entidade americana que promove ações em prol dos oceanos, tendo influenciado programas semelhantes em todo o mundo [como o da rede multinacional Whole Foods]. E também tem a ver com o perfil de consumo no Brasil, que se aproxima mais ao dos Estados Unidos do que ao da Europa, porque tem mais pescados de água doce do que salgada no mercado. O Seafood Watch traz a metodologia e a ferramenta para fazer o mapeamento que queremos, olhando aspectos de bem estar, manejo, condição das espécies, questões sociais, entre outros.
Qual o estoque mensal de peixes do Carrefour?
Não posso abrir esse número efetivamente. Mas para dar uma ideia da dimensão desse mercado por aqui, o consumo de pescado per capita é em media de 10 quilos de peixe por ano no Brasil. Em relação à média mundial, de 20 quilos por pessoa por ano, estamos num patamar que é inferior. Porém, temos a maior bacia hidrográfica produtora de peixes de água doce do mundo e uma costa marinha imensa. Temos um potencial de aumentar muito esse consumo de forma responsável, e esse intuito está no âmbito do que chamamos de diversificação alimentar. A maior parte dos pescados no Brasil são de aquicultura, como a tilápia, o pirarucu e o tambaqui. Há muito mais por se conhecer.
Como você definiria os principais objetivos do programa de mapeamento?
O que queremos é ter a certeza de que a aquele peixe que coloco na minha gôndola foi produzido de forma ambientalmente responsável, que não é de espécie ameaçada, que não tem pesca predatória. Este é o objetivo número um. O segundo objetivo é garantir quantidade e diversidade expressiva de pescados para o consumidor respeitando a premissa da pesca responsável. Em terceiro lugar, queremos educar o consumidor mostrando que ele faz parte dessa cadeia, mostrando que pode sair do lugar comum e experimentar outros pescados tão bons quanto os mais comuns, e que ele comece a diversificar suas escolhas à mesa. A demanda excessiva sobre determinada espécie é o que a coloca em risco. Diversificar reduz essa pressão.
Quais os pontos mais desafiadores desse processo? Onde estão os maiores gargalos de conhecimento?
Eu acho que o maior desafio que temos é todo esse admirável mundo novo. É a primeira vez que faremos em grande escala um mapeamento com aplicação de metodologia internacional de rastreamento de pescado. Nosso grande desafio é a aplicação da metodologia em si. Vamos escolher determinadas cadeias de pescados para aplicar a metodologia e aprender. Estamos definindo as que são de maior participação, vamos mapear tambaqui, tilápia em água doce e vamos estender esse processo para a cadeia de exportação. Nas cadeias de água salgada, para começar, vamos trabalhar com atum e alguns crustáceos.
Qual o tempo estimado para as mudanças começarem a ser implementadas? Ou melhor: quando o Carrefour poderá dizer que seus pescados têm origem sustentável?
De dois a três anos. A cadeia de pescado tem um grau de complexidade muito grande, porque é muito diversa, varia de acordo com espécies e tipos. De saída, vamos pegar as mais significativas. O primeiro diagnóstico deve ficar pronto entre o final deste ano e o começo do próximo. A partir dele, começaremos a fazer as adaptações de medidas para implantação para as primeiras cadeias identificadas como prioritárias. O diagnóstico vai ajudar na identificação dos potenciais de sustentabilidade das espécies mais consumidas e dos manejos que demandam maior atenção.
E vocês já têm uma ideia sobre o risco ambiental e social das espécies mais vendidas nas lojas do Carrefour?
Temos algumas suspeitas, sim. Ao pegar a cadeia da tilápia, por exemplo, é comum ouvir que alguns tanques de criação estão com capacidades no limite do recomendável, o que pode comprometer o bem-estar animal e a qualidade do produto. Já temos um bom nível de controle através da nossa linha “Controle e qualidade”, mas o mapeamento vai aumentar ainda mais nosso campo de visão.
Agora, quando falo da pesca aberta, por exemplo, estou falando da qualidade de vida do pescador, da qualidade do barco. Quando mapearmos os nossos fornecedores, a ideia é identificar todos os entrepostos, chegar à comunidade pesqueira e ver como eles estão envolvidos nesse processo, levando melhorias e treinamento quando necessário.
Queremos que nossas gôndolas só tenham peixes de origem responsável. Mesmo para aquele pescado de maior grau de complexidade, vamos adaptar nossas operações para que ele seja disponibilizado de forma responsável.
E que tipo de ações serão desenvolvidas em relação ao consumidor?
Um dos pontos principais do projeto é levar informação ao consumidor, que poderá optar por um produto que não degrada o meio ambiente. Mostraremos que temos diversidade de pescado de origem responsável, estimulando-o a experimentar peixes diferentes, apresentando receitas, formas de aproveitá-lo melhor e evitar desperdícios. Queremos aumentar a consciência de que comer pescado é legal. Estamos em sintonia com o movimento recente que busca maior diversidade na dieta e um consumo mais saudável. Nesse cenário, o potencial de crescimento do mercado de pescados é monumental, por se tratar de uma proteína saudável e diversa. É a tempestade perfeita.
Quanto o Carrefour vai investir nessa empreitada?
Nesse momento, ainda não abrimos valores. O que temos hoje é só a parceria fechada. Quando tivermos o diagnóstico pronto, teremos ideia do valor. Mas, a título de comparação, em outro mapeamento que realizamos voltado à cadeia de produção de bezerro, estamos investindo 4 milhões de euros [cerca de 17 milhões de reais] no desenvolvimento lá na ponta.
Fonte: Exame