Por Kátia Simões | Ao mesmo tempo que encabeça a lista dos maiores produtores e exportadores de alimentos do mundo, o Brasil ocupa a décima posição no ranking dos países que mais desperdiçam comida, segundo a ONU. Dados do IBGE revelam que cerca de 30% dos alimentos produzidos no país acabam no lixo, o equivalente a 46 milhões de toneladas por ano. Na América Latina são jogados fora 127 milhões de toneladas, nos cálculos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Na ponta do lápis, o Brasil perde R$ 61,3 bilhões anualmente com os alimentos que acabam no lixo.
Virar essa chave é ao mesmo tempo um desafio e uma necessidade. O cenário é crítico em todos os elos da cadeia. O desperdício começa na colheita, quando 10% da produção se perde; passa pelo manuseio e transporte, com perdas de 50%, e pelas centrais de abastecimento (30%); e chega a supermercados e residências (10%), revela a ONG Banco de Alimentos.
Com 72% do negócio ligado à alimentação no Brasil, a operadora de restaurantes corporativos Sodexo adotou o programa WasteWatch, que promove a gestão integrada de resíduos, perdas e sobras de alimentos. Com a ajuda de tecnologia e análise de dados apurada, as equipes acompanham a quantidade de alimento que está sendo desperdiçada ou não aproveitada, os motivos e melhoras que podem ser aplicadas. “A meta é diminuir em 50% o volume de sobras e perdas de alimentos em nossos estabelecimentos até 2025”, afirma Andrea Krewer, CEO da Sodexo Brasil. “No ano fiscal de 2024, reduzimos o desperdício em 2 mil toneladas, o equivalente a mais de 3,7 milhões de refeições”.
O combate ao desperdício de alimentos na empresa envolve ainda doação do que foi produzido e não consumido (16,6 toneladas foram enviadas a ONGs que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social) e adoção de uma cozinha inteligente com equipamentos de alta performance, que reduziu o tempo de cozimento em 50%, a geração de resíduos orgânicos em 30% e o uso de óleo em 60%, além do consumo de água (21%), eletricidade (32%) e gás (66%).
Foi inconformada com o cenário revelado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que aponta que a humanidade desperdiça por dia o equivalente a 1 bilhão de refeições, que Alcione Pereira criou, em 2016, a Connecting Food, foodtech de impacto social focada na gestão inteligente de doação de alimentos excedentes. Por meio da plataforma digital, as empresas informam a quantidade e o tipo de alimento disponíveis. O software se encarrega de comunicar as organizações que podem retirar os alimentos, segundo a capacidade logística e porte. “Estamos presentes em 300 cidades e desde 2019 mais de 30 milhões de refeições foram complementadas com a inteligência de redes de distribuição de alimentos, e mais de 600 organizações atendidas”, diz Pereira.
A Food To Save, foodtech criada em 2021, também usa tecnologia ao conectar estabelecimentos com excedentes a pessoas engajadas com consumo consciente via aplicativo. “Em três anos foram resgatadas mais de 3 mil toneladas de alimentos e comercializadas mais de 3 milhões de Sacolas Surpresa, com descontos de até 70%”, afirma o CEO Lucas Infante. As sacolas contêm excedentes de produção que seriam descartados, mas aptos ao consumo. “Em 2023, geramos receita incremental para mais de 4.500 estabelecimentos cadastrados. De cada 10 sacolas disponibilizadas, entre 7 e 8 são vendidas”.
Segundo Infante, o desafio é educar o mercado e o consumidor para que abandonem a cultura de que é melhor sobrar do que faltar. “Quando apresentamos a proposta ao mercado, ouvimos que a ideia não sairia do papel, afinal as empresas já contabilizavam o descarte nos seus balanços e não queriam se aventurar em novos cálculos”, lembra. “Provamos que entre 80% e 90% dos alimentos próximos do vencimento e próprio para consumo podem ser ativados. Chegamos a recuperar 73% do que é disponibilizado na plataforma”.
A meta da Food To Save é dobrar de tamanho em 2025. O volume de vendas, que em 2023 foi de R$ 32 milhões, deve somar mais de R$ 85 milhões neste ano. O Rei do Mate, com 310 lojas, foi a primeira rede a aderir à plataforma. “Em dois anos deixamos de descartar 10 toneladas de produtos em ótimo estado que iriam para o lixo por conta da validade”, conta João Baptista Silva Junior, diretor de franquias. “Fazemos sacolas com três itens, entre 300 g a 400 g, a preços 40% abaixo do valor original”. O programa está em vigor em 69 franquias da rede e nos primeiros nove meses de 2024 evitou o descarte de 8 toneladas de alimentos.
Com faturamento de R$ 19,13 bilhões no primeiro semestre, o segmento de franquias food service trabalha para diminuir as taxas de desperdício. Das 795 redes em operação, 84% têm processos de controle. É o caso do Grupo Trigo, dono das marcas Spoleto, Gendai, China in Box, Koni e Gurumê. Em 2023, só com a parceria firmada com a Food To Save, comercializou 11.850 sacolas, que geraram receita de R$ 503,2 mil e evitaram a emissão de 13,7 toneladas de CO2. “Evitar o desperdício e reduzir as emissões de efeito estufa são pilares essenciais na nossa operação”, diz Bruno Torreira, sócio e head jurídico e de sustentabilidade.
Comprometido com a Agenda 2030 da ONU, o Grupo Trigo desenvolveu programas antidesperdício a partir da fábrica de Volta Redonda (RJ). Em 2023, direcionou 46 toneladas de resíduos orgânicos para compostagem, 33 toneladas de resíduos de peixe foram transformadas em ração animal e adubo, e 1,7 tonelada de massas e molhos foram doadas para instituições que apoiam pessoas em situação de vulnerabilidade e outras 38 toneladas a instituições de caridade. Com 630 restaurantes, o Grupo Trigo movimentou R$ 2 bilhões em seu ecossistema de franquia em 2023.
“Das 12 milhões de toneladas/ano de alimentos possíveis de reaproveitamento e redistribuição, o Brasil doa menos de 1%”, diz Pheterson Aguiar, do Movimento Todos à Mesa. “O país tem potencial para combater o desperdício e triplicar o número de doações de alimentos em condições de consumo, alcançando 600 mil toneladas redistribuídas ao ano, volume suficiente para impactar e tirar da insegurança alimentar mais de 3 milhões de pessoas em 5 anos”, afirma.
Fonte: Valor Econômico