28/08/2015 às 05h00
Por Marta Barcellos | Para o Valor, de São Paulo
Com 1,84 metro de altura, José Galló chega puxando uma mala executiva de rodinhas, que parece particularmente modesta em comparação a sua estatura.
Estamos no saguão do hotel Intercontinental, onde ele passou a noite, próximos à entrada do restaurante Tarsila. Deveríamos estar no italiano Piselli, escolhido pelo entrevistado para este “À Mesa com o Valor”, mas o presidente da Renner pediu a mudança, de última hora, para o bufê do hotel.
O motivo virá à tona depois: ele quis aproveitar uma brecha de tempo, entre o evento do qual participara e o almoço, para bisbilhotar a concorrência em um shopping próximo.
“Não costumo me hospedar aqui”, esclarece o executivo gaúcho. “Nosso padrão de hotel é mais austero. Em geral, flats.” Por causa do evento realizado ali, e da praticidade, a exceção. Exceção também é o relógio no pulso, um recém-comprado Apple Watch. “Não ligo para grifes. Só me excedo nos relógios”, dos quais, diz, tem uma coleção com cerca de 50 modelos.
Galló veste-se sempre com roupas da própria Renner, ou de redes varejistas que considera similares na relação custo-benefício, para testá-las, como a Banana Republic. “Tenho meus parâmetros. Comprava camisas na J. Crew por US$ 59 ou US$ 69. Agora foram para US$ 88. A gente que trabalha com roupa sabe que não vale.”
Galló “trabalha com roupa” desde novembro de 1991, quando foi chamado pela família Renner para tentar resolver a dramática situação da rede gaúcha, então com oito lojas e em sérias dificuldades financeiras. Hoje a Renner é a maior do setor, espalhada por todos os estados brasileiros, mas ele não se esquece daqueles primeiros meses de trabalho, quando sua única alegria era… um flamboyant.
“Na hora do desânimo, eu ia para uma sala da nossa antiga sede, de onde podia ver um flamboyant florindo, do outro lado da rua. Tenho até foto dele: todo laranja, uma cor bem forte. Durante quatro meses, não havia muito que fazer. Só olhar.”
Isso porque, naquele tempo, a moda era “slow”, bem diferente do atual conceito de “fast-fashion”, inaugurado pela espanhola Zara. Em vez de chegarem novas peças toda semana às lojas, as coleções eram encomendadas inteiras, com antecedência, e só existiam duas: primavera-verão e outono-inverno.
Naquele ano, como se não bastasse a coleção de verão “estar toda errada”, parte da de inverno, igualmente equivocada, já estava contratada. “Na véspera do Natal, fui à nossa maior loja, na avenida Otávio Rocha [em Porto Alegre], e não havia ninguém comprando. Uma tristeza.”
O “tamanho do problema do reposicionamento”, lá no começo, ele até hoje considera o maior desafio profissional de sua carreira. Mais do que quando a Renner foi comprada pela J. C. Penney, em 1998, ou quando a varejista americana resolveu vendê-la sete anos depois, e não havia interessados na aquisição. Depois de ser superintendente de empresa familiar e CEO de subsidiária de multinacional, Galló iria tornar-se o presidente da primeira “corporation” brasileira, quando os controladores decidiram vender suas ações na bolsa e elas acabaram pulverizadas no mercado. “Em vez de mudar de emprego, mudei a empresa”, brinca, já sentado à mesa do Tarsila.
A fotógrafa Ana Paula Paiva pede para Galló mudar de lugar, para iluminá-lo melhor. Nesse momento, passa por ali William Ling, herdeiro do grupo Évora (ex-Petropar) e vice-presidente do Instituto Ling, promotor do evento do qual Galló participara. “Olha a pressão que estou sofrendo”, ele diz, rindo, e mostra o refletor fotográfico agora colocado a seu lado. “Boa sorte”, deseja Ling, dirigindo-se ao almoço com o grupo da manhã, em um ambiente reservado do salão.
Na edição, a imagem do prato do entrevistado sempre acompanha a conta detalhada do almoço. No entanto, o vaivém entre mesa e bufê foi evitado pela assessora de imprensa, Daniela Fernandes, que solicitou aos garçons para, excepcionalmente, montarem os pratos para nós. Foi assim que, depois de servida uma entrada com salada, queijos e frios, foram oferecidas duas opções do menu executivo: salmão com legumes ou filé mignon com molho gorgonzola e arroz de amêndoas. Galló, que havia pedido uma água sem gás, aceita o salmão, e diz que vai compará-lo ao que experimentou no Alasca, em recente viagem de férias com sua mulher, Flávia.
Pela ascendência, será que ele prefere a culinária italiana? Como no caso das grifes, Galló responde que não é “muito ligado” a esse “tipo de coisa”. “Gosto de uma massa bem feita, assim como gosto de um churrasco bem feito ou um peixe bem feito.” Da família, é mais provável que tenha herdado o estilo austero, que hoje se confunde com o da gestão na Renner: “Minha mãe viveu o ambiente da Segunda Guerra, e levou para dentro de casa o hábito de não haver desperdícios, de se fazer economia.”
A origem de Galló é curiosa, começando pelo sobrenome. Seu avô se chamava Ercole Gallo, assim, sem acento. Chegou ao Brasil em 1890, trazendo a expertise têxtil da indústria da família, no Piemonte. Vislumbrou uma oportunidade em um vale, próximo a Caxias do Sul, adquirindo uma rudimentar fábrica local. Trocou o maquinário, expandiu as instalações, substituiu o vapor por energia elétrica e investiu em melhorias na pequena vila dos operários. Resultado: a vila acabou batizada como “cidade de Gallo”, a Gallopolis que logo virou Galópolis, como soava melhor. Quando o neto José nasceu ali, 63 anos atrás, o registro de seu sobrenome ganhou o acento da localidade, por um “acidente ortográfico”. “Era para eu ser Gallo”, diz.
Embora tenha morado na vila com o próprio sobrenome até os nove anos, vendo os operários entrarem e saírem da fábrica construída pelo avô, Galló não usufruiu exatamente de uma tranquila vida de herdeiro. Quando o avô morreu, pouco depois de desfazer uma sociedade para montar uma segunda indústria, a família se transformou em “classe média”. A avó e dois tios voltaram para a Itália, e um deles morreu na guerra. Galló não chegou a conhecer o avô nem tem lembranças do pai, que morreu quando ele tinha dois anos. O padrasto (“Tive uma sorte fantástica”) o criou igual aos dois irmãos, que nasceram já com outro sobrenome. “Galló, só eu.” Seu filho Cristiano, economista no mercado financeiro, está dando continuidade à “nova dinastia”.
O filho entende mais de varejo do que ele próprio, garante com orgulho, pois fez muitas análises de empresas do setor. Parece pouco provável. Afinal, o Galló pai trabalha, estuda e vive no varejo desde o começo da carreira, numa época em que os recém-formados em administração de empresas na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) só queriam saber de indústria e banco. “Varejo era considerado trabalho de segunda categoria”, diz. Depois de ter feito um estágio no grupo A. J. Veríssimo, dono dos supermercados Eldorado, ele voltou para o Sul e montou duas cadeias varejistas próprias, Moda Casa e Eletroshop. Isso, antes de ser convocado pela família Renner. “É um setor muito dinâmico. Faço uma coisa hoje e amanhã já sinto o efeito. Também adoro a proximidade com o consumidor.”
A paixão pelo comércio é tanta que, ao ser indagado sobre seus hobbies, ele é obrigado a confessar: “Gosto de loja, roupa, shopping, supermercado. O que posso fazer?” Pelo menos, diz, sua mulher não reclama quando ele resolve dar uma passadinha em um shopping center, aos domingos ou quando viajam em férias: “Você conhece alguma mulher que não goste de shopping?”
Flávia, a mulher de Galló, não está presente para dar sua versão sobre a fama de workaholic do marido. Mas sua escolha de férias deixa alguma suspeição: quantos shoppings existem no Alasca? “Um”, responde, admitindo que preferiu dedicar-se a passeios por causa disso.
Mais adiante na conversa, depois de atestar o salmão do Alasca como “mais suave” que o do restaurante, ele comenta sobre outra viagem de férias, aos Estados Unidos, quando por acaso estava próximo a Bentonville, e decidiu conhecer a sede e o museu do Walmart. Então, passava pelo Arkansas “por acaso”? Distraído, Galló confirma que sim, e dá seu depoimento entusiasmado: “Coloquei a mão na maçaneta da caminhonete do Sam Walton e pedi para ele me iluminar de vez em quando”, conta e olha para cima, como se estivesse novamente conversando com o fundador da segunda maior varejista do mundo, em valor de mercado, depois da Amazon, que ganhou a posição recentemente.
Bem que Galló tentou seguir outro
caminho. Começou a faculdade de
engenharia química, mas ainda no primeiro ano se viu fazendo um cursinho de introdução ao marketing, no Senac.
“Eu estava ali escutando o professor e de repente entrei em transe. Saí do ar uns três ou quatro minutos, e quando voltei à consciência estava decidido a mudar de faculdade. Hoje sou um cara feliz, na profissão certa.” Ultimamente, tem feito alguns balanços de sua caminhada: “Sou católico, e nesta religião fala-se muito de inferno. Para mim, inferno deve ser chegar ao final da vida, olhar para trás e ver que passou em branco por esta Terra, e que não há como recuperar o tempo. É bom poder olhar para o passado e ver que fiz coisas importantes.”
A “analogia” do inferno é muito usada por Galló na abertura dos treinamentos de líderes e trainees, assim como “a do potencial”. “Esta outra é assim: todos nós recebemos um dom maravilhoso, mas 90% das pessoas só usam 10% do potencial. Além de ser um enorme desperdício, significa que se aproveitou 10% do sabor da felicidade.” E como avalia o próprio percentual de aproveitamento? Ele demora a responder, como se nunca lhe tivessem feito a pergunta nos treinamentos: “Acho que estou nos 80% [do potencial].
Não posso me queixar.
Treinamentos e rituais de motivação no varejo são sempre muito animados, mas, mesmo assim, quem conhece o jeito circunspecto de Galló pode se surpreender com a atitude do presidente nessas ocasiões. Em dezembro do ano passado, por exemplo, ele tirou os 800 funcionários da sede da empresa, em Porto Alegre, com um megafone na mão, anunciando a celebração do recorde de R$ 1 bilhão em vendas no mês. Na porta do prédio, espumantes foram servidos. “Não sou um sujeito rompante, mas tenho meus momentos.
Aí me emociono com facilidade. E quando você fala com o coração, sem demagogia, acaba contagiando quem está em volta.”
Foi com a mesma intenção de contagiar positivamente os funcionários que Galló criou outra prática, que ele tem esquecido de contabilizar como ponto forte da Renner em suas apresentações e entrevistas: a leitura mandatória.
“Preciso falar mais sobre isso. A Renner é uma empresa que lê. Fazemos muito o método da cumbuca.” Diante da ignorância da repórter, ele esclarece como funciona. Os líderes de uma área da empresa se comprometem a ler determinados capítulos de um livro. No dia combinado, reúnem-se em torno de uma cumbuca e tiram o papelzinho com o nome do participante que deverá discorrer sobre a leitura. Se não tiver lido, o sorteado não pode ser substituído e a reunião se dissolve. A pessoa fica constrangida? “Acho que sim.”
No momento, a preocupação dos 450
executivos da Renner é não ficarem atrasados na leitura de “Criatividade S.A. - Superando as Forças Invisíveis que Ficam no Caminho da Verdadeira Inspiração”, livro em que o fundador da Pixar, Ed Catmull, conta como o estúdio de animação abriu perspectivas para o êxito. “É um dos três melhores livros que já li”, diz Galló. “Saí anotando nas páginas o que eu devia mostrar para cada pessoa.”
A formação de novos líderes faz parte da pauta do dia a dia da empresa, onde Galló está há 24 anos, dos quais 16 como CEO. Sua imagem está tão ligada ao sucesso da rede que ele é visto como o “dono” da “empresa sem dono” - já que 100% das ações estão no mercado, pulverizadas entre cinco mil acionistas. Se só existe um Galló, quem o substituirá no futuro? “Não sou eu quem decide meu futuro, e sim os acionistas e o conselho de administração”, diz, sobre a sucessão. “Mas não sou eterno, e a história da Renner é bonita e tem que continuar”.
Ele afirma, bem-humorado, que a empresa vai tão bem que basta ao próximo presidente ter bom senso e deixar os outros trabalharem. No segundo trimestre, o lucro aumentou 30% em relação ao mesmo período do ano passado, e até a comparação das vendas nas mesmas lojas registrou uma alta de 14,5%, ignorando a retração que grassa no varejo. “É brincadeira o que eu disse sobre o próximo presidente, tá?. Claro que ele estará muito bem preparado.” A expectativa do mercado é de que, daqui a alguns anos, Galló vá para o conselho de administração, uma experiência que, não por acaso, ele hoje está vivendo em duas outras empresas, Localiza e SLC Agrícola. “Está sendo como um MBA.”
A assessora traz uma seleção de docinhos do bufê, mas Galló declina da oferta e levanta-se em busca de frutas. Volta de mãos abanando. “Tem um amarelinho na salada de frutas com jeito de manga”, diz. Como é alérgico, pede um mamão. Quando o garçom se afasta, comenta sobre o inconveniente de ter se tornado muito crítico em relação à prestação de serviços, mesmo quando está fora das lojas da rede. “Fico observando tudo: a comida que demora, a fila que não anda, a apresentação da embalagem ruim. Se nossa fila anda, por que as outras não andam? Às vezes chamo o gerente e alerto que assim ele vai perder o cliente, sem usar um tom de reclamação.”
Em sua sala, na sede de Porto Alegre, Galló tem monitores que mostram imagens de todas as 261 lojas. Já aconteceu de telefonar para chamar a atenção de um funcionário relapso, a milhares de quilômetros. “Gosto de ver a vida como ela é”, diz, sobre as visitas de surpresa às lojas. “Mas as câmeras são normais, fazem parte do sistema de segurança.”
No cafezinho, Galló aproveita para
perguntar se a repórter e a fotógrafa
conhecem as coleções da Renner, se
frequentam as lojas, sem têm o cartão de
crédito da rede. Está trabalhando. “Como
a mulher é target da Renner, então temos
que conhecê-la. Por exemplo, não
mandamos o extrato do cartão para a
casa da cliente, que o recebe na loja,
coloca na bolsa e administra. Assim o marido não vai perguntar por que ela comprou isto ou aquilo.” As mulheres na mesa riem quando ele diz conhecer outros artifícios femininos, como deixar as sacolas com compras no porta-malas do carro ou jurar para o marido que o vestido novo é antigo. “E ainda dizem: você é um péssimo observador!”
Mas Galló observa tudo, inclusive que as duas horas, cravadas para o almoço, estão terminando. Despede-se, novamente recomendando visitas às lojas Renner, e não chama o gerente do restaurante para dar algum
aconselhamento. Mesmo improvisado, o serviço deve ter agradado.
Valor Econômico – SP